Caldeirada à portuguesa

Gosto muito de comer bem, e a culinária portuguesa enche-me as medidas. Sei que muito provavelmente todos dizemos a mesma coisa sobre a comida que as nossas mães nos cozinharam, independentemente da cultura de que venhamos. Gosto muito de uma boa caldeirada, aqueles peixes todos naquele molho à base de tomate, com batatas às rodelas e pimentos verdes parece que nasceram para dançar juntos numa panela, ou a sopa de caldeirada que a minha mãe faz depois, juntando água e massa estrelinhas. Se quiserem, convidem-me também para uma sardinhada, mas com broa de milho e uma salada de tomate e pimentos assados até terem a pele toda preta e depois raspada com uma faca, é uma maravilha. A minha mãe insiste sempre que se termina a refeição com fruta, uma laranja ou uma banana, e em dias bons com uma manga, mas o que eu gosto mesmo é de um arroz doce com canela ou uma musse de chocolate com um café expresso... a cana de açúcar, a árvore da canela, o cacaueiro e o cafeeiro parece que apareceram juntos no mundo para terminar as nossas muito portuguesas refeições que são, em muitos casos, a maior expressão do amor das nossas mães por nós e pelas nossas famílias. Cada prato, cada brinde, são uma atualização daquele amor que sentimos nas entranhas; é o tecido que nos faz e que nós fazemos, que nos liga e com que nos ligamos a todos os portugueses. É por isso que esta realidade que nos é tão presente nos parece natural e atemporal, como se não tivesse um passado, uma história, como se não resultasse de muitas trocas e experiências, umas mais pacíficas e outras mais violentas, que os nossos antepassados tiveram e fizeram ao longo dos quase nove séculos em que nos reconhecemos como povo. A verdade é que a mãe de Dom Afonso Henriques não lhe cozinhava nenhuma destas coisas, nem os soldados que venceram em Aljubarrota descansaram a fumar um cigarro. Há toda uma história por detrás de tudo o que fazemos hoje que se perdeu na história das coisas, mas que continuamos a fazê-las automaticamente como nossas. Há quinhentos anos lançamo-nos pelo mar e fomos. Participamos em trocas, conquistas, invasões e guerras que marcam a nossa realidade hoje. Nos espaços em que estivemos, deixamos muito de nós, mas também trouxemos muito. Na Índia podemos ver o padeiro a percorrer as ruas para vender pão, ou podemos comer o delicioso “vindaloo” que não é mais que “vinhas d’alho”, e no Japão a deliciosa “tempura” que não é mais que os “peixinhos da horta”... felizmente, da América do Sul trouxemos as batatas e da América Central o tomate, os pimentos e o milho... sem eles, o meu presente seria roubado daquele sorriso inesquecível da minha mãe a servir uma caldeirada à família. Como é que ela faria aquela sopa de caldeirada para o jantar, sem a massa que trouxemos da China? Como é que terminaríamos as refeições sem as bananas e mangas que trouxemos da Índia ou as laranjas que trouxemos da China? É por isso que a palavra Portugal dá o nome a laranja, como “portokáli” no Grego, em várias línguas. Sem o arroz que trouxemos da China, o açúcar da Índia e a canela do Sudeste da Ásia como é que poderíamos viver sem um bom arroz doce? E agora, aquela pergunta que não quer calar e a gente até perde a voz ao perguntar: e viver sem chocolate e café? Sem o chocolate da América Central e sem o café que nos deu a Etiópia a vida seria muito mais triste. Não admira que a esperança de vida na idade média fosse de 40 anos... quem é que quereria viver mais sem estas coisas?

Então, pergunta: se isto se revela tão claro desta forma, se o nosso passado e a nossa história podem e são atualizados de forma tão evidente nas nossas cozinhas todos os dias, porque é que é tão difícil entender e aceitar que outros fenómenos culturais e de alguma forma invisíveis estão também presentes no nosso dia-a-dia? Eu leio os comentários à entrevista do professor Pedro Schacht ao Diário de Notícias, e quando começo a ler os comentários de tantos compatriotas fico profundamente triste com uma certa cegueira autoimposta que tantos expressam. Nós deixámos e trouxemos muitas coisas e é perfeitamente possível que tenhamos presente as dinâmicas de opressão e repressão que vivemos com outros povos, noutros espaços e outros tempos. O que ele diz não é um veredicto sobre nós, é um convite para pararmos e juntos vermos de onde é que vêm as batatas, os tomates e os pimentos para entendermos a criação coletiva que é a nossa caldeirada e decidir criticamente o que é que queremos do passado no nosso presente. Nós fazemos muitas coisas, com o maior amor como as nossas mães fazem quando cozinham e nos amam quando nos alimentam, e nem sempre temos presente as escolhas dos nossos antepassados que nos levaram aquele momento no presente. O professor pode até estar errado, mas só vamos saber se entrarmos em diálogo, em vez de ficarmos virtualmente, escondidos atrás do teclado, a mandar-lhe tomates. E para quem acha que fazer isso é ter tomates, os tomates vieram do México.

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