Será que fomos domesticados para sempre?
Neste 4 de Julho, vejo no History Chanel como os norte-americanos se narram, como humanizam o espírito do momento da sua fundação, fazendo com que a América atual seja um reflexo dos americanos daqueles tempos. Os comentadores dizem coisas como “A nossa desconfiança de governos vem daqueles tempos…” quando falam da resistência ou ao comentar o Massacre de Boston afirmam “Quando nos atacam, nós não damos a outra face, isso não é quem nós somos…” e às vezes, parece que comentar o passado ou o presente é a mesma coisa. Não há dúvida que para este povo, a narrativa heroica do espírito fundador está no centro da sua identidade. Vivo num país cheio de contradições e cheio de alegados padrões morais a que a realidade não corresponde, mas em que o domínio da narrativa heroica é inequívoco. Mesmo as vozes dissidentes, que são muitas, interagem não na desconstrução da história que forma e interpreta o seu mundo, mas na profunda convicção de que os Estados Unidos podem ser melhores. A rebeldia contemporânea espelha o espírito de independência e a conquista de espaço social dos chamados “patriotas” que pariram este país. Os americanos das mais variadas origens, olham para o seu passado e desafiam situações contemporâneas, na certeza de ver um futuro melhor que pode (e vai) acontecer. Acredito que este é um dos mais influentes fatores de preservação e propagação da identidade coletiva americana, o que é especialmente demonstrado pelo apelo que fazem a esta narrativa heroica nos momentos em que a sua identidade está vulnerável.
Enquanto vou vendo o programa, penso na nação dos brandos costumes e tento entender de onde vem a nossa lógica interna, de onde saem os nossos valores centrais quando confrontamos os nossos problemas atuais. Contrasto a ousadia grega, face à brutalização do seu povo, com a apatia vociferante portuguesa. Quando é que fomos domesticados desta forma? Quem nos pôs este cabresto que o Financial Times tanto elogia? Parece que nos momentos em que a nossa identidade está mais fragilizada, continuamos a usar a lógica salazarista da nação dos safanões, mesmo quando “o país dos brandos costumes” mais parece a epígrafe, só faltando o “aqui jaz...”, da nossa lápide. Então, vendo o que fazem os norte-americanos quando neste dia contam a sua história e atualizam a sua consciência fundadora, volto-me para a nossa fundação e pergunto-me, que sangue corria nas veias de Afonso Henriques, que um dia juntou uns quantos, no princípio da autodeterminação e se fez rei? Qual era o sonho dos homens e mulheres que lutaram ao lado dele e que nos fizeram existir? Não é do momento da fundação nacional, de certeza, que vem esta vassalagem moderna, nem ela reflete os homens e mulheres que transformaram sonho em verdade.