Moro num país multicultural, abençoado por Deus (pelo menos é o que diz nas notas de um dólar), e inquietante por natureza

Nunca tive qualquer dúvida de que a minha filha ia crescer bilingue. Afinal, através da minha atividade profissional, sempre tive acesso a informações sobre os benefícios de falar duas línguas e também sempre tive perfeita consciência dos mitos e falsas informações que muitas pessoas vivem e espalham, desde a ideia de que vai confundir as crianças, até que vão misturar ou nunca vão falar bem nem uma língua nem a outra. Na realidade, todas as estatísticas mostram que as crianças bilingues se expressam melhor que as crianças monolingues e têm melhores desempenhos escolares em todas as áreas, da biologia à matemática, passando pela física e a química. Por isso, para mim, quando tive que decidir o que fazer quando a minha filha nasceu, nunca tive qualquer dúvida. Lembro-me de na altura ter uma conversa com a minha amiga Ana Lucia Lico e ela foi contundente e inequívoca. Sempre que tenho alguma dúvida, lembro-me dessa conversa... "Se você quer que a sua filha fale português, o que é que você está disposto a fazer? Pergunto porque o resultado final está diretamente relacionado com o que você fizer. Se você não tiver uma relação saudável com a sua língua, a sua filha não vai ter uma relação saudável com o português, se você não fala português, ela não vai falar, se você não tiver uma relação com Portugal, a sua filha não vai ter uma relação saudável com Portugal; então o que é que você está disposto a fazer?" e ainda "No dia em que você estabelecer comunicação com a sua filha em outra língua, acabou tudo..." estes foram conselhos que muito me orientaram, e falo sempre, em qualquer contexto, em português com a minha filha. Confesso que ao princípio não foi fácil falar português em público, tinha medo de ofender as outras pessoas, acho que tinha medo de acionar os comportamentos típicos de alguns americanos que tratam pessoas com sotaques ou falantes de outras línguas como cidadãos de segunda, como pessoas estúpidas a quem é fácil ludibriar. E, sem dúvida, isso aconteceu algumas vezes, mas o meu à vontade em inglês e a minha carranca de psicopata rapidamente afastam essas criaturas.

Há dois anos, durante o III Encontro Mundial sobre o Ensino de Português na Columbia University em Nova Iorque, a professora Maria-Célia Lima-Hernandes da Universidade de São Paulo apresentou um trabalho tão brilhante quanto trágico, que gerou um diálogo fantástico sobre bilinguismo. Uma das coisas que ela disse foi que os alunos bilingues são frequentemente alvos de bullying. Para mim, perceber naquele momento que uma decisão tomada por mim pela e para a minha filha a expunha a esse triste fenómeno, foi uma das coisas mais difíceis de aceitar, tive mesmo dificuldade em me expressar quando tentei participar no diálogo. Realmente, não sei o porquê da minha surpresa, uma vez que, se há adultos neste país que dizem o que dizem e têm as atitudes que têm e que eu já ouvi e presenciei tantas vezes, porque não haveriam crianças assim? Afinal estes adultos têm filhos… mas, para mim, foi a primeira vez que considerei esta situação e foi a primeira vez que, com algum pânico, me perguntei: e quando ela estiver sozinha? E quando eu não estiver lá? É uma preocupação com que vivo, mas a Lucinda tem uma personalidade robusta; ela não tem medo de nada e, ao contrário das outras crianças sentadas em círculo na sala a ouvir uma história, ela é o bulldozer curioso pela vida que corre de um lado para o outro a abrir todas as gavetas e a tentar descobrir como é que as coisas funcionam.

Ontem foi um dia simpático. A Julie e eu resolvemos ir a um shopping que tem uma área para as crianças brincarem, o que dá muito jeito quando está muito calor ou muito frio lá fora, e um carrossel de feira com uns cavalos que a Lucinda gosta. Ela brincou, apesar de ter ficado muito zangada por ter que tirar os sapatos e ela está apaixonada por um par de sapatos novos que lhe compramos e não os queria tirar. Até jantamos num restaurante, ou melhor, a Lucinda jantou uma refeição para crianças enquanto nós celebrávamos cada garfada com ela. Para nós, era muito cedo para jantar. Quando terminamos, fomos à loja da Legos, que a Lucinda adora, e eles têm na loja uns caixotes com Legos com que ela pode brincar… enquanto os pais decidem que Legos novos lhe comprar… eu estava ao lado da Lucinda quando um casal com dois filhos entrou. O garoto correu para o caixote onde a Lucinda estava a brincar e ficou encantado com um carro. Mostrou ao pai, que sorriu para mim, e continuou a brincar. O pai comentou que o filho gosta de Legos e eu respondi que a Lucinda também. Do que ela não gostou muito foi de partilhar, e eu disse-lhe em português “Lucinda, tens aí muitos Legos, tens que deixar o menino brincar também…” e do canto do olho vejo a cabeça do pai dar um salto para me observar e, sem perder o compasso, disse firmemente “Let’s go!” e o garoto foi com ele para junto da mãe e da irmã. O pai disse alguma coisa à mãe, que olhou para mim, e a família saiu. E ainda bem que saíram, porque este tipo de gente não tem mesmo que andar em público, devem ficar em casa e não conspurcar os espaços públicos deste país, mas não pude deixar de pensar: “Ali vão dois bullies em formação, e a culpa não é deles, aqueles pobres garotos não escolheram e não têm opção nenhuma de crescer e ser outra coisa”. Mas, e eu, como é que eu protejo a minha pequena destas coisas?