Criar uma criança bilingue requer coragem, porque o mundo vai testar a nossa convicção sem piedade nem trégua

Criar uma criança bilingue requer coragem, porque o mundo vai testar a nossa convicção sem piedade nem trégua. Há muitos mitos que são constantemente atirados aos pais, sem restrições e ditos com a maior certeza, que só servem para criar dúvidas onde elas não existem. Os pais precisam de ter presente o conhecimento e a firmeza das evidências para se manterem firmes no propósito de educar filhos bilingues quando, por exemplo, todas as outras crianças da mesma idade no jardim-de-infância já falam, muitas usam frases completas e comunicam-se muito bem com os pais e professores, enquanto que os seus filhos ainda só dizem palavras. É preciso toda a convicção para resistir à perceção de que uma decisão nossa faz os nossos filhos “ficarem para trás” ou parecerem ter um desenvolvimento de capacidades verbais “lento ou atrasado” em relação aos outros. A realidade é que estas crianças estão no processo de aprender dois sistemas linguísticos ao mesmo tempo e, apesar de começarem a falar mais tarde, rapidamente ultrapassam os monolíngues e expressam-se melhor, tanto numa língua quanto na outra, do que os monolíngues na sua língua solitária.

As comunidades portuguesa e brasileira passam pelas mesmas questões de integração e assimilação que outras comunidades nas mesmas circunstâncias neste país, e que as levam tantas vezes a não cultivar em casa as línguas de herança, com medo de prejudicar essa bendita integração. Os pais assustados com o bombardeio de questionamentos sobre a sua decisão, têm que desconstruir internamente estes “problemas” que muitos antecipam e manter o rumo e a certeza, até porque, isto do “a sua filha ainda não fala!?” é só uma das muitas coisas que vão ouvir. É preciso ter calma e respeitar a falta de informação e formação específica, mesmo de pessoas que nem conhecemos, porque as que conhecemos e amamos vão desafiar-nos constantemente, e com a melhor das intenções. Toda a gente acha que é um perito em relação a estas questões da língua; toda a gente acha que é a coisa mais simples do mundo, mas os pais de crianças bilingues têm que ter a consciência de que possuem um domínio sobre este assunto que não é do conhecimento geral, e que é em muitos aspectos contraintuitivo. Assim, é preciso ter a generosidade de compartilhar o que descobrimos nas nossas leituras e pesquisas, e fazê-lo com a mesma tranquilidade, seja a primeira ou a milésima vez que estejamos a responder à questão. Estas são algumas das coisas que ouço com mais frequência, que agora já me fazem sorrir, e a forma como costumo responder:

- as crianças que falam outra língua em casa desenvolvem a fluência em inglês mais devagar. Até a minha mãe, a avó, se mostrou muito preocupada com esta questão. Na realidade, todos os estudos mostram que as crianças monolingues e bilingues desenvolvem fluências à mesma velocidade depois de começarem a falar. Mostram ainda que elas desenvolvem a sua capacidade de expressão independentemente da língua que estão a falar, ou seja, mesmo que os pais falem a língua de herança em casa, estão efetivamente a ajudar os filhos a expressarem-se melhor em inglês – o importante é falar e não a língua em que se fala.

- para as crianças aprenderem inglês bem, devem estar num ambiente de imersão total em inglês. A primeira pessoa que me expressou esta ideia foi uma amiga bibliotecária, uma pessoa por quem tenho uma grande amizade, mas esta ideia é um mito. As pesquisas mostram que os alunos que participam de programas bilingues têm performances superiores a inglês do que os alunos em escolas monolíngues. Mais, e talvez tão importante como, também têm performances superiores a matemática, biologia, física e química, porque trabalhar nas duas línguas desenvolve o raciocínio e a lógica.

- ensinar inglês exclusivamente leva a graus mais elevados de assimilação, e a integração garante maior sucesso económico. Quem me “informou” desta mentira pela primeira vez, foi um educador, grande defensor do “English only” nos Estados Unidos. Bom, primeiro, sabemos hoje que as crianças que aprendem a língua de herança são mais autoconfiantes e motivadas através da valorização da sua cultura. Além disso, as pesquisas mostram também que os estudantes em programas bilingues abandonam menos e terminam em percentagens mais altas o ensino secundário – e as comunidades portuguesas na América do Norte bem que precisam urgentemente de uma estratégia que promova a formação secundária e universitária e combata o insucesso e abandono escolar. Segundo, o “English only” é um movimento bom só para o povão mesmo porque, para a elite norte-americana, não existe uma instituição educativa de prestígio neste país que não tenha um requisito de língua estrangeira. Porque será?

- não é preciso ensinar os falantes de herança a ler e escrever, falar a língua em casa chega. Quem primeiro me disse isto foi uma mãe de uma criança bilingue que ensinei na Escola Internacional das Nações Unidas. Irónico. Hoje vivemos numa economia global, cada vez mais integrada, em que tudo é negociado em tempo real, e em que conseguir falar, escutar, ler e escrever em duas línguas é um trunfo profissional. Preparar as nossas crianças para esta realidade aumenta-lhes tremendamente as oportunidades. Ainda há pouco tempo estive em contacto com um cidadão norte-americano que trabalhou durante 20 anos no Brasil, mas que acabou sempre por não conseguir avançar nos seus empregos por causa dos erros que fazia ao escrever português. O mesmo é válido nas empresas norte-americanas que contratam falantes de português para tratarem dos seus negócios. Quem não sabe ler e escrever nas duas línguas acaba por ser passado por quem sabe.

Finalmente, os pais de crianças bilingues não podem ter vergonha da sua língua e da sua cultura. A primeira vez que tive que falar em português com a minha filha em frente dos meus sogros, senti-me muito desconfortável. Pensei que eles se iam sentir de fora e passei para o inglês. Mas, imediatamente, tive que me segurar às minhas convicções sobre a educação bilingue dela e passar para segundo plano o desconforto que eles ou eu pudéssemos sentir. O que estou a fazer é maior que isso. Também, se os pais têm vergonha de falar português em público, ou de serem portugueses ou brasileiros em público, então que não se venham lamentar que os filhos não falam ou têm vergonha de falar português, e que não assumem a sua herança cultural. É causa e efeito. Força aí para todos os pais! Isto não é fácil.